top of page

A BRUXA, UM MITO DOS ÍNDIOS BRASILEIROS

Tem mulher que vira bruxa. Deixa a cabeça num canto, lá onde vai virar bicho. A cabeça fica parada, deitadinha, sai só o corpo pelo mundo, soltinho. Vai pelo mundo, sem cabeça.

Assim, contam que é bruxa sem cabeça, o corpo voando bem danadinho por matos e caminhos afora, a cabeça descansando. Não acredito. Contam que a bruxa desprega a cabeça e deixa parada, fixa no mesmo lugar. Tira a cabeça, depois coloca de novo? É possível a mulher fazer a cabeça grudar-se e desgrudar-se da dona, do pescoço que é seu?

Vai guinchando, comendo o que passar, correndo sete provínciais. Come tudo o que encontrar, tem uma fome muito grande. Criança, talvez não. Só se for muito pequena...

De madrugada, antes de amanhecer, ainda no escuro, volta para onde virou, para a mesma cabeça, vira mulher perfeita. Ninguém percebe, faz o voo na dormida, na sua casa todos dormem, enquanto a bruxa vai para sua penitência, correndo sete províncias. Quando vem de volta, pega o mesmo resto que deixou, as peças de roupa, a cabeça e vai se trocar, pega a cabeça e cola no corpo, veste-se, vai dormir.

Porque ela vai pelas sete províncias, nua em pelo, nua do jeito que nasceu, batendo o caco velho, lepo-lepo-lepo... A roupa fica do lado da cabeça, e também os enfeites. Vai encontrar com Satanás... Voa é com o poder de Satanás, não anda com seu próprio poder, a força não é dela mesma.



Ilustração de Luana Geiger

Quando se cansa, volta para trás, vai dormir, agarrar a cabeça deitada. Ninguém vê que ela saiu, voando como bicho e voltou. Mas começam a desconfiar que aquela mulher é bruxa, porque parece que ela fica doente, amanhece o dia triste, vomitando, engulhando, amarela, não quer comida, vai definhando.

A mulher que é bruxa vai ficando fraca e amarela com seus passeios. Só se cura quando é pega, quando os outros desconfiam e é apanhada.

O povo mais velho conta esta história da bruxa que corria, ficava assombrando as pessoas na estrada, nos caminhos, de noite, fora de hora. Lá ficava, sem cabeça...

Uns contavam para os outros da mulher que passava a noite nas estradas, correndo, fazendo doidice, assombrando todo mundo. Um rapaz deu com o lugar onde ela virava bruxa, onde deixava a cabeça e suas vestes, onde ficava a informação do que ela fazia. Contou, ajuntou-se um grupo de homens, foram ver...

Era verdade, viram a cabeça sem corpo, vivinha, o rosto da mulher-bruxa, os olhos abertos, o cabelo bem bonita e comprido. Nem sei se saía sangue, a cabeça falava.

Os homens foram lá para desencantar, naquele dia. Fincaram uma faca bem rente à cabeça e esperaram, escondidos. A bruxa veio, só o corpo sem roupa, era linda essa mulher...

Ela tentou encostar na cabeça, mas não conseguia, a lâmina da faca impedia, não virava mulher outra vez, era o aço e o metal frio que a afugentavam.

O corpo voltou para trás, não conseguia fincar na cabeça. Ia tentando, tentando... Dava aquele guincho de bruxa, voltava na carreira.

Amanheceu, o Sol saiu, e na luz do dia ela não podia vir. Quando chegou perto de meio-dia, eles contando as horas, foram tirar a faca. Ela se arriscou mais uma vez, pegou a cabeça do chão, foi para casa dormir. Passara da hora, e assim ela desencantou, não virou mais bruxa, já era dia.

Meu pai é que contou essa história. Faziam assim, ajuntando os homens para desencantar aquela pessoa que estava ficando doente, chorando, ficando velha, pessoa que não prestava nem para comer, estava correndo na rua.

Iam atrás de quem estava se encantando, aquele fantasma na rua, iam esperar, um dia pegavam na mulher virada, punham a faca entre a cabeça e o corpo, desencantavam. Não virava mais aquele inseto mau. Ainda existe bruxa que aparece, é uma visão da noite. Quando tem bruxa, a gente sente passar guinchando.


______________

Narradora: Cícera Tremembé, abril de 1997, narrativa registrada por Betty Mindlin.


Referências:

MINDLIN, Betty. O primeiro homem e outros mitos dos índios brasileiros. Ilustrações de Luana Geiger. São Paulo: Cosac Naify, 2011

bottom of page