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ANTROPOFAGIA, POR CAETANO VELOSO

Atualizado: 30 de nov. de 2022

Em entrevista ao Roda Viva no fim do ano passado, Caetano Veloso conta que, apesar de sua inegável relação estética com a percepção moderna que culminou na Semana de Arte Moderna de 22, quando o disco Tropicália foi concebido e lançado, o evento que neste ano completa seu centenário não lhe era uma referência tão familiar assim. Mas a influência do que a percepção artística que resultou na Semana tinha de revolucionária estava, ainda assim, compreendida e bastante presente em seu trabalho.

Aproveitando a ocasião deste centenário, difundimos aqui um trecho do ensaio "Antropofagia", publicado em livro homônimo pela Companhia das Letras em 2012. Neste ensaio, Caetano conta, num belo texto e rico em imagens, o processo pelo qual encontros com autores como Oswald de Andrade e Mario de Andrade se deram em sua trajetória, e de que maneira suas obras estão presente no movimento que veio a ser a Tropicália, sintetizando também muito das reflexões que esses artistas fizeram sobre o Brasil de sua época.


ANTROPOFAGIA

Caetano Veloso

Essa visão [a superação da oposição centro/periferia] é a grande herança deixada pelo modernista Oswald de Andrade.

Oswald foi, juntamente com Mário de Andrade, a liderança intelectual do movimento modernista brasileiro, lançado escandalosamente em São Paulo em 22, com uma semana de recitais e exposição que suscitaram admiração, susto e horror - e lançaram as bases de uma cultura nacional. As pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, o músico Villa-Lobos, e outros poetas e escritores como Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo também foram figuras centrais do movimento. Enquanto Mário de Andrade - cujo nome eu ouvia constantemente ser pronunciado pelos meus colegas nacionalistas - tinha sido a figura responsável, normativa e organizadora do modernismo, Oswald - cujo nome eu só ouvira ser pronunciado duas vezes: por meu colega de classe Wanderlino Nogueira Neto no curso secundário, e naquela conversa entre Rogério e Agrippino sobre Panamérica - representara a fragmentação radical, a força intuitiva e violentamente iconoclástica.

Meu encontro efetivo com esse autor se deu através da montagem de uma peça sua, inédita desde os anos 30, pelo grupo de teatro Oficina. Eu vira um espetáculo do Oficina - Os pequenos burgueses de Górki - em 65, na época em que Bethânia estava com o Opinião em São Paulo. A montagem me encantara. O estilo do diretor José Celso Martinez Corrêa era ao mesmo tempo mais tradicional e mais sutil do que o de Boal. Lembro que, ao sair do teatro, pensei em como era problemático que eu gostasse talvez mais daquilo do que do meu querido Arena contra Zumbi. O Zumbi era um passo, uma conquista, não havia dúvida, mas em Os pequenos burgueses do Oficina havia uma sensibilidade que me reportava aos espetáculos da Escola de Teatro da Bahia de Eros Martim Gonçalves e do Teatro dos Novos de João Augusto Azevedo. Uma sensibilidade que o Zumbi, muito mais esquemático, não mostrava. E foi a visão de Os pequenos burgueses de Zé Celso - muito cheio de nuances, muito "europeu" - que me deu a percepção de que o Zumbi de Moal era americano, broadwayesco. Fui ver O rei da vela - a peça de Oswald de Andrade que o Oficina tirava de um ostracismo de trinta anos - cheio de grande expectativa. Mas não imaginava que iria encontrar algo que era ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibilidade e uma sua total negação.


"Antropofagia", Tarsila do Amaral, 1929.

Zé Celso se tornou, aos meus olhos, um artista grande como Glauber. Se a própria função de diretor de teatro indica um status menos autoral do que a de cineasta - e, de fato, aquela noite significou para mim mais um encontro com Oswald do que com Zé Celso -, era inegável que, possuidor, como Glauber, de uma intensa chama própria, Zé Celso tinha uma firmeza de mão no acabamento com que Glauber nem poderia sonhar. Seu desembaraço artesanal lhe permitia fazer o espectador sentir o espaço de acordo com a intenção poética profunda que lhe inspirara esta ou aquela disposição cênica, esta ou aquela movimentação de corpos, vozes e luz. O canhestro em Glauber muitas vezes intensifica a mensagem estética - Zé Celso produzia tais intensificações em acordo íntimo com seu gosto e sua capacidade de controle dos meios. A peça continha os elementos de deboche e a mirada antropológica de Terra em transe. O primeiro ato recebera um tratamento de gosto expressionista, com o anti-héroi central, Abelardo I, atendendo em seu escritório, um a um, os devedores de seus empréstimos, que eram mantidos numa jaula e tratados às chicotadas pelo seu assistente, Abelardo II; as roupas eram escuras, as maquiagens marrons, a exceção dos dois Abelardos, que tinham os rostos pintados de branco, como palhaços. O segundo ato era uma chanchada: um painel berrantemente colorido representava em traços meios cubistas, meio infantis, a baía de Guanabara, no Rio, onde Abelardo I confraternizava com a família de sua mulher Heloísa de Lesbos: a gorda mãe que ouve galanteios do genro; o irmão integralista (nazifascista); a irmãzinha menor com suas luvas de boxe; o irmão veado que deplora a família (e grita a toda hora que seu "destino é pescar nos penhascos"); a avó a quem Abelardo dedica versos de Lamartine (...Babo, o compositor de sensacionais marchinhas carnavalescas dos mesmos anos 30 em que a peça foi escrita); o visitante americano (numa primeira - e mais eficaz - versão do personagem caricato do agente imperialista que seria uma constante das peças do CPC da UNE nos anos 60); todos num palco giratório em que as boutades e as indicações das transações econômicas pessoais, familiares, de classes, nacionais e internacionais se sucediam numa agilidade e numa vivacidade de entontecer. O terceiro ato era em tom de ópera. Heloísa de Lesbos - que no primeiro ato aparecia de terno branco e fumando por uma longa piteira, e no segundo num maiô futurista prateado que fazia a atriz (Itala Nandi) parecer um robô do filme Metropolis, uma Barbarella, uma Modesty Blase - agora estava no centro do palco com um longo vestido negro cuja cauda ocupava o grande círculo que fora giratório no ato anterior, chorando a miséria em que caiu Abelardo (um arrivista com quem ela, "aristocrata" do café, se casara por conveniência econômica), vítima da sagacidade de seu assistente homônimo - e do imperialista americano.

Muito da força visual do espetáculo se devia a Hélio Eichbauer - que, por isso mesmo, é uma figura de grande importância na história do tropicalismo -, o jovem cenógrafo carioca que estudara na Tchecoslováquia com Sooboda. A unidade cênica de cada um desses atos só se tornou possível pela segurança técnica e imaginação inventiva desse grande artista brasileiro (cujos trabalhos enriquecem nosso teatro até hoje, e com quem tenho colaborado na criação de meus shows de música - tendo inclusive usado como ilustração de capa do meu disco Estrangeiro sua maquete para o cenário do segundo ato de O rei da vela). Mas havia uma tensão inevitável - e muito salutar para esse espetáculo inaugural da nova fase do Oficina - entre o temperamento apolíneo de Eichbauer e as ambições de Zé Celso de tornar-se mais e mais dionisíaco. Menos de um ano depois, já em 68, o diretor aceitaria a empreitada de montar Roda viva, peça juvenil de Chico Buarque sobre a engrenagem que cerca a criação de uma estrela de música popular, e faria disso uma experiência radical no sentido de um teatro de explosão e do irracional. Muito do que se viu então foi de grande impacto e importância estética, mas, a não ser pela extraordinária montagem de Hamlet em 94, o nível de O rei da vela não foi atingido por nenhum outro espetáculo do Oficina que eu tenha visto (ele montou Na selva das cidades, de Brecht, e As três irmãs, de Tchékhov, durante meu exílio londrino) - ou do teatro brasileiro em geral.

Encerramento da peça "O rei da vela" em montagem do Teatro Oficina. Sesc Pinheiros, São Paulo, 2017.

Eu tinha escrito "Tropicália" havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.

No texto de apresentação que fez imprimir no programa, Zé Celso dedicava o novo espetáculo a Glauber e à capacidade de responder à realidade da época que o Cinema Novo exibia - e de que o teatro estava carente. E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador. Isso confirmava minha percepção de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer em música. Depois de ver a peça, conversei com Zé Celso, a quem fui apresentado já não lembro por quem. Estávamos num restaurante frequentado por gente de teatro e de música, e por artistas em geral. Contei-lhe sobre minha canção "Tropicália" e de como eu a achava semelhante ao que ele estava fazendo. Acho que ele pediu que eu cantasse um trecho (ou recitasse a letra) da canção, pois é nítida a memória de seu comentário em tom de pergunta (uma marca): "O que você acha parecido é esse modo cubista de fragmentar as imagens?". Comentei a concordância no interesse por Terra em transe e Chacrinha. E nossa conversa animou-se com facilidade. Disse-lhe da profunda impressão que me causou o texto escolhido, e ele falou horas sobre Oswald de Andrade, ressaltando o fato de que aquela peça, mais moderna do que tudo o que se escreveu no teatro brasileiro depois dela - com sua visão erotizada da política, sua linguagem não linear, seu enfoque bruto de signos que falam por si na revelação de conteúdos-tabus da realidade brasileira -, parecia ter ficado reprimida pelas forças opressivas da sociedade brasileira - e de sua intelligentsia -, à espera de nossa geração.

Nos anos 70, li, porque o autor tinha sido meu colega na Faculdade de Filosofia, um livro do ensaísta baiano Carlos Nelson Coutinho intitulado O estruturalismo e a miséria da razão, em que, seguindo o pensamento de Georg Lukács, ele aponta uma ameaça à linhagem racional da filosofia ocidental - e à própria racionalidade da burguesia revolucionária ascendente -, ameaça essa vinda simultaneamente do "irracionalismo" e do "super-racionalismo" - ambos representativos de uma fase decadente da mesma burguesia. Carlos Nelson é um pensador marxista respeitado e, a despeito de nos vermos com grande raridade e sempre com brevidade, meu amigo. Ou, de qualquer modo, alguém de quem eu gosto. Seu livro me interessou primeiro porque eu queria ver como funcionava a cabeça de um intelectual conhecido se posta a trabalhar profissionalmente. Logo, no entanto, e à medida mesma que eu ia achando o livro mais e mais esquemático, impressionou-me o quanto me servia a carapuça. De fato, se eu fora respeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burguesas moralistas da direita (ou seja, pelo caminho mediano da razão), tivera o apoio de - atraíra ou fora atraído por - "irracionalistas" (como Zé Agrippino, Zé Celso, Jorge Mautner) e "super-racionalistas" (como os poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos). Uma figura, contudo - eu estava agora descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 -, era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente: Oswald de Andrade.


Capa do disco "Estrangeiro".

Uma prova de que Oswald os (nos) unia aquém ou além da "razão" é que o racionalista Boal, a quem encontrei à saída do Oficina na noite de estreia de O rei da vela, tendo me perguntado se eu havia gostado, e tendo me ouvido dizer que sim, fez o seguinte comentário: "Não adianta, Oswald de Andrade está morto e enterrado. Prefiro Vianninha", referindo-se a Oduvaldo Vianna Filho, o mais importante autor teatral saído do CPC da UNE. Boal queria dizer com isso que aquelas figuras caricatas - o "burguês decadente", o "agente do imperialismo", etc. - pelo menos faziam sentido nas peças planfetárias do CPC, onde, ainda que de forma simplista, elas eram postas numa perspectiva política, enquanto em Oswald elas serviam a uma visão anárquica de que só se depreendiam, no máximo, julgamentos morais (o burguês "corno", o jovem aristocrata "homossexual", o arrivista filisteu etc.). Ora, para mim Oswald estava apenas nascendo, e suas figuras pareciam disparatadas justamente porque, em vez de servir como ilustração para ideias supostamente indiscutíveis, instigavam a imaginação a uma crítica da nacionalidade, da história e da linguagem. Em breve eu descobriria que o teatro de Oswald de Andrade era a parte mais fraca de sua obra - e O rei da vela, talvez a parte mais fraca do seu teatro. Tudo o que eu vira ali, estava melhor posto em sua poesia, seus romances e seus manifestos.

Poema de Oswald de Andrade.

Antes do Zé Celso, os poetas concretos vinham se encarregando de ressuscitar Oswald. Uma antologia de poemas introduzida por longo ensaio de Haroldo de Campos e um artigo de Décio Pignatari, "Marco Zero de Andrade", forçavam a reintrodução entre os protagonistas da literatura brasileira a figura de Oswald, até então envolta em silêncio ou lembrada apenas como a de um piadista inconsequente e um vanguardista "datado". Quando eu disse a Augusto o efeito que o contato com Oswald tinha produzido em mim, ele logo animou-se a me passar os textos de Décio e Haroldo, e considerou o meu entusiasmo uma confirmação a mais das afinidades entre eles, concretos, e nós, tropicalistas. Através de Augusto e seus companheiros tomei conhecimento da poesia a um tempo solta e densa, extraordinariamente concentrada de Oswald. Também, pouco depois, da sua revolucionária prosa de ficção. Sobretudo recebi o tratamento de choque dos "manifestos" oswaldianos: Manifesto da poesia pau-brasil, de 24, e, principalmente, Manifesto Antropófago, de 28. Esses dois textos de extraordinária beleza são ao mesmo tempo um aggiornamento e uma libertação das vanguardas europeias. Filhos, como os manifestos europeus, do futurismo de Marinetti, sendo o primeiro deles anterior aos surrealistas, eles eram também uma redescoberta e uma nova fundação do Brasil. Mais violentamente ainda do que Antonio Candido décadas depois, Oswald se referia à literatura brasileira como "a literatura mais atrasada do mundo". Não era por deixar de observar isso que ele se sentia livre para dizer, no primeiro dos manifestos: "Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo dirigido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas".

O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, "assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação." Oswald subvertia a ordem de importação perene - de formas e fórmulas gastas - (que afinal se manifestava mais como má seleção das referências do passado e das orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores) e lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o ritual canibal. A cena da deglutição do padre d. Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade.

A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também - e procuro agora - relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações "maiores" do movimento - e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas - foram talvez fruto de uma superintelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo cm que a ideia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.

(...)

O encontro com as ideias de Oswald se deu quando todo esse processo já estava maduro e o essencial da produção já estava pronto. Seus poemas curtos e espantosamente abrangentes, a começar pelos ready-mades extraídos da carta de Caminha e de outros pioneiros portugueses da América, convidavam a repensar tudo o que eu sabia sobre literatura brasileira, sobre poesia brasileira, sobre arte brasileira, sobre o Brasil em geral, sobre arte, poesia e literatura no geral.

Oswald de Andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também um profeta da nova esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 60. Esse "antopófago indigesto", que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai.


______________ Essa é a reprodução de um trecho do ensaio contido no livro Antropofagia, publicado em 2012 pela Companhia das Letras, onde também se pode ler os ensaios "A poesia concreta", "Chico" e "Vanguarda".


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