Neste artigo, Robson Cervera, um dos idealizadores da Casa Nossa: Cooperativa Cultural, nos conta sobre a atuação da cooperativa na cidade do Alto Tietê e compartilha as questões, ideias e desafios que uma organização autogerida podem nos propor. Robson procura responder a perguntas tais quais: como surgiu o projeto, com que propósitos e princípios?; como atua a cooperativa na cidade com relação ao público e aos objetivos? e qual a importância desse tipo de "iniciativa" (na falta de palavra melhor) num país desigual como o Brasil e numa cidade como Arujá?
Por Robson Cervera
O desejo e a idealização de um espaço de cultura, ensino, estudo e trabalho conectando diversas áreas já existia para mim há bastante tempo. Simplificando, seria uma conexão entre ideias de economia solidária e escolas como a da Ponte e Projeto Âncora. Algo como uma comunidade de aprendizado, trabalho e cultura. Eu e Luan trabalhávamos em um espaço cultural que pretendia ser diferente, inclusive nas relações de trabalho, mas essa pretensão entrava em conflito com noções tipicamente neoliberais de mérito, e as ilusões decorrentes: socialização da produção (articulação do potencial produtivo comunal) com a centralização dos ganhos, de capital, mas principalmente capital social - tendência que se acentuou com o neoliberalismo de redes.
Essas e outras tensões levaram a situação de rompimento e assim que realmente compreendi a extensão do problema só restava para mim sair e buscar desenvolvimento de relações mais horizontais em outro lugar. Enviei mensagens para vários grupos de amigos avisando do meu pedido de demissão e de que retomaria a velha ideia da cooperativa. Em uns dois minutos, Carlos Iramina, amigo da faculdade de economia, respondeu que se tivesse espaço para produção compartilhada de alimentos ele participaria. Fui até a casa do Victor para desabafar e por a cabeça no lugar, assim como discutir as implicações morais da saída e construção de projeto aparentemente análogo: “faz parte do jogo do sistema, e o projeto é totalmente diferente, e se o Luan é um bom professor e você confia nele, pode ser ótimo chamá-lo para o projeto também, e mesmo se eu fosse ganhar metade do salário que eu ganho hoje sairia do meu trampo e já começaria com vocês porque é algo que realmente acredito, apesar de não ter ideia do que poderia fazer lá”. Conversei ainda no calor do momento com Zé, Guigo, Ricardo e todos demonstraram animação (até porque já falava com eles sobre cooperativas há alguns anos)
Isso aconteceu no final de 2020, ainda com todos trabalhando em home office. Fiz uma lista e conversei previamente com 50 pessoas que sabia que poderiam ter interesse e marcamos uma reunião online em que participaram 15 pessoas. Em mais ou menos 15 dias, um sonho individual começou a se tornar um projeto coletivo. Saiu a ideia de montarmos um centro cultural, com aulas variadas, produtora, café, possibilidade de fazermos uma horta comunitária, e buscando permanentemente a horizontalidade.
Não demoramos para encontrar o espaço, primeiro em uma lista digital enviada pela Melissa, casa do Bira e da Neide (antigos e conhecidos professores de Arujá). Melhor lugar não poderia existir. Os processos burocráticos levaram bastante tempo, e só entramos no espaço em maio, com um pouco de esfriamento e pausa nas reuniões. Começamos Luan e eu com as aulas de música, retomando uma parte das aulas presenciais (um grande alívio para professores de música). Bob, Bela e Fábio estavam para gravar o clipe de Por Inteira do Luan e do Pedro Santos, de onde surgiu um projeto parceiro paralelo da Alo filmes. Vanessa e Rodrigo começaram a dar os cursos de culinária, e no final do ano tivemos a apresentação dos alunos de música com uma confraternização no espaço.
Hoje temos as aulas de música, atendimento psicológico, aulas de inglês, aulas de culinária, e estamos começando um cineclube, sarau periódico rotativo entre projetos análogos na cidade, ensaios abertos, e talvez o maior propósito do espaço é ser um local de encontro, um articulador da cena artística e cultural local tendo como base o respeito e a cooperação entre os participantes. Mas certamente que propósitos e princípios são uma coisa. Idealizar há dez anos a criação de um espaço cultural com organização autogerida é uma coisa, a realização implica uma série de dificuldades, algumas já muito bem descritas na bibliografia sobre o assunto: as tensões de se tentar criar uma lógica comunal em uma sociedade neoliberal que tem como projeto a rearticulação da psique humana tendo como base a competição, a tendência em um coletivo de se buscar um bode expiatório para tentar explicar porque o projeto não está caminhando como se imaginava, a dificuldade de se organizar reuniões em um projeto que se inicia enquanto integrantes ainda possuem outros trabalhos principais, ou a próprio descrédito ao trabalho mental e reuniões em uma sociedade eminentemente colonial em que no limite quem pensa nossos futuros são mestres e doutores em centros de pesquisa, governos e sedes de multinacionais fora do território nacional.
Outras dificuldades, talvez as mais interessantes e mais difíceis de lidar são as pessoais: como vamos gerir nossas contradições dentro desse formato, respeitar nossas limitações mas também buscar as transformações necessárias para o projeto funcionar? Apesar de nossas críticas ao mundo em que vivemos, estamos realmente dispostos a buscar soluções para os problemas, já que boa parte deles estão relacionados com hábitos construídos em uma vida inteira? Assim, enfrentamos problemas típicos de qualquer nova empresa no mercado, mais os problemas característicos do formato, com o qual estamos criando experiência diante de cada problema que surge.
Estamos há aproximadamente dez meses no espaço, entre dificuldades de organização, de institucionalização, e dificuldades às vezes ainda básicas de regras internas e de relação com o público. Existem as pessoas que tomamos como cooperadas que estão desenvolvendo os projetos e participando plenamente das reuniões e decisões. Existem os entusiastas e parceiros que participam esporadicamente de eventos, ou eventualmente estão presentes. Como saber diferenciar a participação e os direitos e deveres de cada um para que não sejam cobrados por coisas que não faz sentido serem cobrados, ou ainda não lidar de forma que se sintam injustiçados por apesar da participação não serem vinculados totalmente ao projeto? Por sermos um projeto que busca ter uma relação mais humana entre os integrantes, um resultado inesperado é que acabamos tensionando mais as relações a partir de ideais de convivência, até porque em outros espaços de trabalho esse pressuposto nem existe. O que se evidenciou é a necessidade de uma organização institucional clara, reuniões periódicas em que principalmente os desejos e limites de cada um sejam colocados com clareza, algo difícil em uma sociedade em que nós nos acostumamos a fugir de tensões, geralmente delegando para outros responsabilidades organizacionais e emocionais.
Na relação com o público, a minha proposta (algo que não passou em assembleia ainda) é termos assembleias abertas regulares que tenham participação dos alunos, familiares, e comunidade interessada. Provavelmente com poder indicativo para a assembleia de cooperados. Com o tempo, com o desenvolvimento e compreensão das limitações e potencialidades coletivas, poderá haver a abertura de assembleias gerais deliberativas. Por enquanto, ainda temos uma comunicação mais direta e pessoal com os alunos, familiares e parceiros, e uma comunicação de mídias a partir do Instagram, apesar de termos bastante dificuldade (por exemplo, temos muito material, e postamos pouco, problema contrário do que geralmente as páginas de Instagram possuem). Acreditamos que com os novos eventos - sarau, cineclube, ensaios abertos - teremos maior dinamismo interno e construção de novas relações e novos projetos; apesar de nos pensarmos potencialmente enquanto um centro cultural, por enquanto ainda sinto que parecemos mais com um provedor de serviços com um braço social a partir de bolsas que damos a alguns alunos.
Essa [qual a importância desse tipo de "iniciativa" (na falta de palavra melhor)?] é uma pergunta engraçada, porque apesar de conseguir criar mentalmente utopias potenciais transformadoras de longo prazo sobre Arujá e o Brasil, desde articular uma cena cultural local, até articular uma federação de comunidades de estudo e trabalho com sistema de crédito próprio. Estamos em um momento ainda inicial do projeto que nossos maiores objetivos são termos uma boa organização interna, com boa relação entre os integrantes, uma boa relação com os parceiros, com os alunos e pais de alunos, conseguirmos aumentar nossas rendas pessoais, como dividir os custos, como tomar decisões (voto ou consenso, o que são práticas de consenso?), como resolver conflitos (lista de atos puníveis ou justiça restaurativa) atrair mais pessoas para o projeto etc. Acho que uma das grandes importâncias desse tipo de iniciativa é justamente mostrar o quanto essas questões aparentemente pequenas são fundamentais, e também não são simples, já que no geral as instituições tendem a se organizar por princípios opostos com os quais estamos amplamente acostumados - mérito, competição, ressentimento, manipulação, expulsão e demissão. E geralmente consideramos essas questões como menores porque mesmo nossa tradição de pensamento “mais avançada” está presa na tradição estatal-mercantil patrimonialista, e não a toa não parece existir outra solução a não ser esperar que algum ser mitológico com um grande plano e com grandes poderes nos salve, geralmente com planos de aprofundamento de aspectos geradores da própria crise, como exemplo: para melhorar o Brasil é necessário mais violência/ para melhorarmos economicamente, precisamos ampliar as medidas neoliberais, mesmo sendo a lógica central de se pensar políticas públicas há 30 anos.
Outro aspecto engraçado da pergunta é a própria falta de palavras. Será que filosoficamente nos questionamos sobre a validade do termo "iniciativa" já que no fundo participamos de fluxos de produção coletivos? Então o projeto não surgiu no final de 2020 em uma reunião, mas talvez em um curso do ITCP da Unicamp, ou em uma palestra do Ladislau Dowbor? Isso, claro, associado às contradições próprias do sistema em que todos gostariam de ter relações de trabalho melhores e em que ganhassem melhor… Então, obviamente não existe um lugar onde foi iniciado, mas também parece haver um “roubo” sistemático de palavras cada vez mais forte com a expansão e “vitória” do sistema. "Liberdade", "iniciativa", "organização", "disciplina", todas viram qualidades para descrever a organização de uma empresa movida para o lucro, e faltam palavras, mesmo que falhas, para tentar descrever alternativas. Nesse abismo de práticas e utopias, são conceitos que parecem que só servem para serem combatidos, mas uma iniciativa coletiva precisa se organizar internamente, sendo que disciplina e liberdade só são possíveis pensadas coletivamente respeitando-se a individualidade, do contrário, seriam variações de violência e autoritarismo.