Ao primeiro homem, conta o Livro do Gênesis, foi dado o poder de nomear. “Deus formou, pois, da terra toda sorte de animais campestres e de aves do céu e os conduziu ao homem para ver como ele os chamaria, e para que tal fosse o nome de todo animal vivo qual o homem o chamasse. E o homem deu nome a todos os seres vivos, as aves do céu, a todos os animais campestres” (Gen, 2, 19-20). O poder de nomear significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la. Esse poder é o fundamento da linguagem e, por extensão, o fundamento da poesia. O poeta é o doador de sentido. Na Grécia culta e urbana as crianças ainda aprendiam a escrever frases assim: “Homero não é um homem, é um deus”. No entanto, sabemos todos, a poesia já não coincide com o rito e as palavras sagradas que abriam o mundo ao homem e a si mesmo. A extrema divisão do trabalho manual e intelectual, a Ciência e, mais do que esta, os discursos ideológicos e as faixas domesticadas do senso comum preenchem hoje o imenso vazio deixado pelas mitologias. É a ideologia dominante que dá, hoje, nome e sentido às coisas. (...)
No mundo moderno a cisão começa a pesar mais duramente a partir do século XIX, quando o estilo capitalista e burguês de viver, pensar e dizer se expande a ponto de dominar a Terra inteira. O Imperialismo tem construído uma série de esquemas ideológicos de que as correntes nacionalistas ou cosmopolitas, humanistas ou tecnocráticas, são momentos diversos, mas quase sempre integráveis na lógica do sistema. Nós vivemos essa “lógica” e nos debatemos no meio das propostas que ela faz. Furtou-se à vontade mitopoética aquele poder originário de nomear, de com-preender a natureza e os homens, poder de suplência e de união. As almas e os objeto foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status. Os tempos foram ficando - como já deplorava Leopardi - egoístas e abstratos. “Sociedade de consumo” é apenas um aspecto (o mais vistoso, talvez) dessa teia crescente de domínio e ilusão que os espertos chamam “desenvolvimento” (ah! poder nomear as coisas!) e os tolos aceitam como “preço do progresso). Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memórias e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender. A propaganda só “libera” o que dá lucro: a imagem do sexo, por exemplo. Cativante: cativeiro. Ou quererá a poesia, ingênua, concorrer com a indústria e o comércio, acabando afinal por ceder-lhes as suas graças e gracinhas sonoras e gráficas para que as desfrutem propagandas gratificantes? A arte terá passado de marginal a alcoviteira ou inglória colaboracionista?
Na verdade, a resistência também cresceu com a “má positividade" do sistema. A partir de Leopardi, de Hölderlin, de Poe, de Baudelaire, só se tem aguçado a consciência da contradição. A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussuro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio. O canto deve ser “um grito de alarme”, era a exigência de Schönberg. E os expressionistas alemães queriam ouvir no fundo do poema o “urro primitivo”, Urschrei!
Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista. A árvore que, na falta de luz e de calor, se esgueira por entre as sombras dos espinheiros que a oprimem e, magra, torta, aponta ao ar livre onde poderá receber algum raio de sol, não trouxe na raiz a fatalidade daquele perfil esquivo e revolto. A poesia moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si sua substância vital. (...)

Nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando. O que ela não pôde fazer, o que não está ao alcance da pura ação simbólica, foi criar materialmente o novo mundo e as novas relações sociais, em que o poeta recobre a transparência da visão e o divino poder de nomear. Só a Revolução. (...) Eles sabem, e é por isso que fazem figura de revolucionários, que essa reciprocidade é inteiramente função da igualdade de ventura material entre os homens. E a igualdade de ventura levará esta a um grau de que só podemos ter, por enquanto, uma pálida ideia. Sabemos que tal felicidade não é impossível. (...) A ideologia não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença. O papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar as divisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais; depois, encobrir, pela escola e pela propaganda, o caráter opressivo das barreiras; por último, justificá-las sob nomes vinculantes como Progresso, Ordem, Nação, Desenvolvimento, Segurança, Planificação e até mesmo (por que não?) Revolução. A ideologia procura compor a imagem de uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas (“cada coisa em seu lugar”, “cada macaco no seu galho”), mas que não admite nunca as contradições reais. A ideologia dominante não consegue ser, a rigor, nem empírica nem dialética. Não consegue ser empírica porque as leis do mercado e da burocracia desprezam a face do ser vivo singular. A ratio abstrata transformou o corpo e a cabeça de cada indivíduo em mão de obra sem nome nem rosto que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria-prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e ser consumida. Pela força mesma dessa abstração, a ideologia tampouco suporta o momento da negação com que o pensamento dialético exige que a “má positividade” seja superada. (...)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. Em termos quantitativos, nunca foram tão acachapantes o capital, a indústria do veneno e do supérfluo, a burocracia, o exército, a propaganda, os mil engenhos da concorrência e da persuasão. A ferida dói como nunca. Os seus lábios estão sempre abertos. Não os fechará quem feche os olhos. (...)
O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito de si mesmo, o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os seres. Outro alvo não tem na mira a ação mais enérgica e mais ousada. A poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela a qual, ou contra a qual, vale a pena lutar.
______________ Alfredo Bosi (1936-2021) foi crítico literário e professor emérito de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Publicou, entre outros, História Concisa da Literatura Brasileira (1970) e O Ser e o Tempo da Poesia (1977), onde se encontra o texto acima reproduzido em sua versão integral.